quarta-feira, 5 de março de 2014

Sophie Calle - Noções de autobiografia vs autoficção

Trabalho do Seminário:
Imagens Contemporâneas



As noções de autobiografia vs. autoficção

no trabalho de Sophie Calle










Docente: Prof. Doutora Margarida Medeiros
Trabalho realizado por Andreia Torres
dezembro de 2011

 

 

 

 




0. Intro

Este trabalho irá explorar as noções de biografia, autobiografia e autoficção e a sua aplicação ao trabalho artístico, em particular à obra de Sophie Calle. Deste modo, é nosso objectivo e a partir dessas formas de subjectivação, testar a sua pertinência como pontos de entrada nalguns trabalhos da artista francesa, procurando evidenciar os processos e os modos pelos quais essas formas têm servido como motor de criação das suas operações artísticas, assim como grelha de leitura do ponto de vista da recepção e da sua crítica a partir do biografismo (olhar perscrutor da ligação entre arte e vida do artista, mas também consiste na tentativa de explicar uma obra em relação à vida do autor.).

O tratamento desse material de raiz autobiográfica suscita desde logo um conjunto de perguntas que demonstram a complexidade do tema e a diversidade possível dos pontos de vista sobre o mesmo. Traduzindo isto em questões, pergunte-se então: o que é uma autobiografia? O que é uma autoficção? Qual é a diferença entre uma autobiografia e uma autoficção? Em que medida a exploração autobiográfica se tornou num dos pontos de partida preferidos da artista para a criação da sua obra? Como é que ela, em consequência, se tornou uma porta de entrada para a análise dos seus trabalhos? Partindo de vários trabalhos, passíveis de serem encarados como “exercícios do eu” – na formulação de Foucault - procurar-se-á demonstrar como a dedicação e a utilização de material ligado à (sua) vida vivida e ficcionada, logo aqui entendida de modo plural, providencia e despoleta a criação.

 

Deste modo, procurarei a partir das definições de autobiografia e de autoficção (Serge Dubrovsky) analisar o trabalho da artista Sophie Calle (especialmente em Suite Vénitienne, No Sex Last night, Prenez soin de vous, entre outros) e como estes “exercícios do eu” se repercutem na sua produção artística, reflectindo, sempre que possível, sobre o alcance desses modus operandi nas práticas de outros artistas que a partir de si desenvolvem projectos que fazem das suas vidas reais e ficcionadas a matriz das suas obras.


sobre o conceito de autoficção entendido como uma estratégia da literatura contemporânea capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e de tornar híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não mais como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para performar a própria imagem de si autoral que surge nos textos. O foco da investigação concentrar-se-á na produção de alguns autores que se lançaram na rede. (Alguns nomes: Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian)


Procurar-se-á, pois, discorrer sobre a os binómios arte e vida.  EXPLORAR MELHOR ISTO

1. À procura das respostas necessárias – parte I

O que é uma autobiografia? Para muitos autores, artistas, pessoas comuns e outras, uma autobiografia genuína é uma tarefa impossível. Porquê? Porque todas as pessoas projectam uma imagem particular de si próprias, mas raramente esta imagem coincide ou está de acordo com as percepções dos outros. Todas as pessoas carregam memórias do passado, mas geralmente estas são distorções selectivas da verdade. Todas as pessoas têm uma história de vida para contar, mas normalmente ela é mais próxima da ficção do que da realidade. Somos assim. É caso para dizer, com toda a propriedade, c’est la vie.

À autobiografia está, muitas vezes, associada a ideia de verdade, pelo que ela representa um meio para o(a) autobiografado(a) ajustar contas com outras versões da sua vida (na maior parte das vezes versões não autorizadas pelo/a próprio/a), ou para não abdicar ele/a próprio/a de fazer a história da sua vida e não deixar (só) para outros que a façam por si.

É sabido que à ideia de verdade autobiográfica está associada a ideia de desvelação de aspectos menos positivos, episódios em que o autobiografado(a) sai derrotado(a), ou, pelo menos, tocado(a) no seu estatuto social. Eis o que George Orwell diz a este respeito: “An autobiography is only to be trusted when it reveals something disgraceful. A man who gives a good account of himself is probably lying, since any life when viewed from the inside is simply a series of defeats.”[1] Por outro lado, à prática autobiográfica também anda associada a noção de ficção porque, tal como nos diz Caroline G. Heilbrun[2]: “Autobiography is not the story of a life; it’s the re-recreation or the discovery of one. In writing of experience, we discover what it was, and in writing create the pattern we seem to have lived. Simply put, autobiography is reckoning.”[3]

Assim sendo, fala-se aqui de uma operação de controlo sobre algo que apesar de poder ser partilhado por mais pessoas é a manifestação de um desejo de controlo da realidade, da criação de um efeito para si e só depois para os outros. A este propósito, podemos lembrar também o que disse Christian Boltanski: Anyway I’m rather constructed person, and my reality is disappearing more and more, I suppose it’s partly like that for everyone, artist or not. You decide what bit of yourself is to show or not.[4]

Em termos de modus operandi artístico, seja no campo performativo, seja no campo visual, o trabalho em torno da autobiografia demonstra, muitas vezes e antes de mais, o interesse que os artistas têm no questionamento e na definição dos seus limites. Quer isto dizer que se procura, através da reflexão e do tratamento do material autobiográfico, perceber o significado dos movimentos de entrada ou de saída de si mesmo e delimitar as fronteiras relativas à identidade e às noções de público vs. privado, mas também às noções de representação ou de autenticidade dos artistas, e, também e reversamente, dos espectadores.
Atestando a propósito a ideia de que é quase impossível não colar o texto, imagem,  a quem o diz, ainda para mais quando foi escrito pelo próprio, a frase de Andy-Warhol “No matter how good you are, if you are not promoted right, you won’t be remembered”,. Aproveitando a referência, importa dizer que Andy Warhol pode e deve ser visto como um dos artistas em que a exploração autobiográfica terá determinado a sua vasta obra. Warhol dizia que “a vida e vivê-la influenciaram-me mais do que as pessoas”. Ou, se quisermos, “The primary creation of Andy Warhol is Andy Warhol himself.“[5]

À procura das respostas necessárias – parte II
Afinal, o que é uma autobiografia? Continuando a busca de uma definição de autobiografia e a sua aplicação no campo artístico, importa agenciar uma obra cooperante para a circunstância intitulada Autobiography, de Barbara Steiner e Jun Yang. Para além de localizar os lugares, situando-os no tempo, e de definir as funções da autobiografia, esta obra permite-nos entender a forma como a autobiografia nos catapulta para a criação artística. A potencialidade da autobiografia em se constituir como chave-mestra para entrar no campo artístico é um aspecto importante deste livro. Abra-se a obra e somos levados de imediato a várias partes. Quais? A muitas divisões. É que os capítulos são nomeados pelos autores com base na metáfora da casa, ficando assim o livro dividido em rooms: Entrance. Writing identity: on autobiography in art.  Room 1. Alter Ego. Room 2. Disappearance. Room 3. Facts. Room 4. Authenticity.  Room 5. Hybrids.  Room 6. Race.  Room 7. Political Systems.  Room 8. Media. Room 9. Self-Reflection.

Percorrendo a casa, são-nos apresentados vários exemplos de trabalhos que nos ajudam a perceber o lugar e a função da autobiografia no mundo contemporâneo. Organizado em “divisões/quartos” temáticos, este livro reflecte uma variedade alargada de atitudes e práticas artísticas.

Alguns artistas resgatam o material autobiográfico para revelar os aspectos privados das suas vidas em actos de partilha de intimidade, outros procuram ocultar-se por detrás de alter ego inventados, ou de imagens cuidadosamente desenhadas, ou de persona[6], opção correspondente a uma dimensão intermédia de representação entre o eu, ou o si e a personagem. Outros apresentam os factos puros das suas rotinas diárias como um registo ou uma gravação da sua existência, enquanto outros ainda tentam capturar-se no espelho da auto-reflexão. Alguns exploram a influência dos media ou dos sistemas políticos e sociais no sentido do: quem somos nós? Enquanto outros exploram o impacto do seu background étnico ou racial na construção de uma auto-identidade - a necessidade de projectar uma imagem através da segurança da família, ou à luz de um olhar público hostil.

Todos se questionam como é formada a identidade no mundo global e todos exploram o papel de mudança do indivíduo na sociedade moderna. Em resumo, estes artistas expandem a nossa compreensão sobre aquilo que significa estar vivo hoje. Eles usam a arte para mostrar os modos complexos com que criamos histórias sobre nós próprios. Em suma, todos nos ajudam a compreender o mundo em que vivemos.

Assim, o trabalho de inúmeros criadores é convocado em larga escala e disposto nas divisões acima referidas, sendo uma das grandes virtudes desta obra a assinalável abrangência temática, estética, geográfica e (pluri/trans)disciplinar das matérias abordadas. A apresentação e contextualização dos artistas e respectivas obras, assim como a reprodução de discursos próprios e a inserção de imagens documentais dos trabalhos, contribui para uma assimilação efectiva dos conteúdos, sendo o resultado final uma espécie de acompanhamento assistido à casa, uma espécie de visita guiada.

Através do agenciamento do trabalho dos artistas que é efectuado quer ao nível da sua formalização, quer ao nível da sua apresentação, observamos as diversas formas como se trabalha a partir do material autobiográfico. Essas formas variadas de trabalhar demonstram:

1. uma pluralidade de atitudes: a. revelação de aspectos privados da sua vida (visível, por exemplo, em Nan Goldin e em Sophie Calle); b. ocultação através da criação de alter ego inventados e da produção de imagens self-fashioning (como se pode ver no trabalho de Ric Pacquée (1954- ); c. desdobramento de si através de exercícios de persona que, como já referimos, é uma instância intermédia entre o meu eu social e uma personagem dita teatral [isso é particularmente evidente no trabalho de Eleanor Antin (1935- )].

2. uma variedade de práticas: d. a exposição de factos das rotinas diárias como um registo documental da sua existência [veja-se os diários de Andy Warhol (1928-1987)]; e. a auto-reflexão a partir de um olhar no espelho que captura traços distintivos [convoque-se aqui o trabalho de Cindy Sherman (1954- )]; f. a medição da influência dos media e dos sistemas políticos e sociais [um exemplo, o de Jeff Koons (1955- )], assim como do impacto do seu background étnico ou racial na construção da identidade.

Todos estes impactos e ligações diversas com a obra destes artistas ao nível dos modos de recepção permitem-nos ver como se opera a negociação com a obra segundo os modelos de interactividade visível no contacto directo, físico, apreendido e testemunhado por outros: autor(es) e espectador(es) em situações artísticas de co-presença e visitantes em objectos artísticos visuais[7], ou invisível no recolhimento dos resultados da actividade mental: pensamentos, associações, remissão para referências estabilizadas, etc., e de interpassividade, ou seja, estamos lá mas é como se não estivéssemos (mostrando que não estamos inelutavelmente condenados a ser manipulados, nem sempre disponíveis para a troca, nem formatados para uma apropriação sempre resultante da tensão entre o dispositivo e o nosso corpo-receptáculo).

O conjunto de atitudes e modus operandi artísticos e formas de recepção assinalados fazem ressaltar uma série de questões resultantes daquilo a que Foucault chamou “práticas do eu”. A saber:

1. autobiografia (“The authentic autobiography not only becomes a myth; the myth itself becomes a subject of the work.”[8]) vs auto-ficção: “It has nothing at all to do with me. I work with myself, that’s my material somehow, but the finished photograph has something more to offer than reflections of my personality…”[9];

2. auto-conhecimento (“If I don’t know such basic things about myself, who does?” [10]) vs representatividade do mundo (“Whenever I watch my own videos I don’t see me personally – It feels watching somebody else’s story”)[11] vs inclusão do colectivo a partir de si (“the really interesting autobiographies are those that speak not of the author but of every reader”[12]);

3. os certificados de autencidade (“Who wants the truth? That’s what show-business is for – to prove that it’s not what you are that counts, it´s what you think you are.”[13]) vs as suspeitas de falsidade ultrapassadas pelo “pacto autobiográfico”[14]: “in which a trinity of identities had to be established for and accepted by the reader.[15]

4. a delimitação das fronteiras entre realidade e ficção: “Autobiography is the product of various factores – real experiences, together with things heard, seen, read, narrated and invented. Fact and fiction are inextricably woven together.[16]

5. o espelhismo dos materiais autobiográficos: quem somos nós?“Autobiographers observe themselves, and open themselves up to observation by their readers. The process equates with looking in a mirror…”[17]

À procura de respostas necessárias – parte III
O que é a autoficção? O termo autoficção foi empregado pelo francês Serge Doubrovski para nomear um exercício ficcional criado como resposta à análise de Philippe Lejeune sobre a autobiografia. O conceito de autoficção, tal como foi entendido por Doubrovski, inscreve-se na fenda aberta  pela  constatação  de  que  uma narrativa de si, quer  seja  reminiscência  ou  não,  tende para a ficção, donde que todo desejo de ser sincero é um trompe-l’oeil. A autoficção deve ser entendida, então, como um apagamento do eu biográfico, capaz de constituir-se apenas nos deslizamentos e amplificações do seu próprio esforço em apresentar-se como um eu, através da operação de consubstanciar-se textualmente. Um eu que se descentraliza, recriando-se através de um exercício livre de transformação que almeja uma alteridade capaz de oferecer a plenitude, qual resposta eficaz à falta que preenche os vazios existenciais. A isto pode-se chamar self-fashioning.

Nos estudos literários a autoficção é definida, de uma estrita, como “trabalhos/exercícios em que os autores criam novas personalidades e identidades para si mesmos, onde, ao mesmo tempo, mantém a sua identidade real (o seu nome verdadeiro),” e, num sentido mais alargado, como uma prática híbrida, situada entre a autobiografia e o romance.”[18]

In literary studies, autofiction is defined, strictly speaking, as "works through which authors create new personalities and identities for themselveworks through which authors create new personalities and identities for themselves, while at the same time maintaining their real identity (their real name)," and, in a wider sense, as a hybrid practice, situated between autobiography and the novel

Uma ficção que é fabricada dentro (de dentro/no interior) e com o mesmo é uma ficção que se compõe da imaginação por um processo de apropriar-se de fragmentos do outro, se (quer seja o outro encontrado nenhum interior de nós mesmos) isto ser outro encontrado dentro de cada um mesmo, (pela exploração da nossa singularidade) explorando o self's própria estranheza, o self's própria estranheza, (ou através Dos os fragmentos fazem outro) ou os fragmentos de outros e do nosso meio. Que os materiais do auto-fabrico tenham aumentado é um fenômeno de um mundo no qual um excesso de reinos de informações, em que a própria vida está acelerando e temos maior acesso a coisas; um mundo no qual um excesso da modernidade é um fato da nossa existência. Este excesso da modernidade cria novas aproximações ao mesmo: ele cria a possibilidade de escolha  quem você é, e especialmente de imaginar isto novo mesmo, da participação na sua constituição. Isto pelo menos é a ilusão que temos. Quando este processo é executado no reino da arte, ele adquire a distância crítica e fica um processo do processo. Fica marcado por certo grau da abstração. Os artistas formam a sua arte com base em e as suas .personalidades, mas com a arte permanecemos em um estado do processo. A ilusão de qualquer finalidade é rejeitada. ”


O corpo do artista e a sua imagem
Apesar do termo ter sido raramente usado, enquanto categoria definidora e operativa, na arte contemporânea, os artistas têm-na praticado intensivamente. As recentes releituras da body-art e da performance revelaram que muitos artistas usaram os seus próprios corpos como matéria principal do seu trabalho. Trabalharam e continuam a trabalhar o seu corpo de diversas maneiras, através de actos isolados ou repetidos, momentâneos ou duradouros, através de exercício, dietas e rituais, através de marcas inscritas e mutilações, através de cirurgia e através da genética, e através de uma hibridização do corpo e máquina, podendo um dia efectivar a conversão do corpo numa forma pós-humana. Alguns exemplos de artistas que trabalharam e continuam a trabalhar nesta área: Vito Acconci, Gina Pane, The Viennese Actionists, Chris Burden, Carolee  Schneeman, Marina Abramović, Roger Racine, Stelarc, Orlan, Janine Antoni, Eduardo Kac, entre outros.

A cultura de si
Por outro lado, temos outros artistas que se tomaram a si próprios como motif do seu trabalho. Estes artistas desenvolveram novas formas de representação do eu, através da invenção de pseudónimos, alter ego e vidas imaginárias, através da construção de novas imagens de si e da criação de novas narrativas. Sempre a partir dos factos da vida de cada um, através de auto-retratos ficcionais, autobiografias e mitologias pessoais; através do disfarce/da dissimulação: maquilhagem, figurino e protética, através de expressão, actuação e encenação, e através da manipulação de texto e imagem, por exemplo, em livros de artistas, fotografia encenada, imagens digitais, ou através da internet. Exemplos de alguns artistas a cabimentar nesta área de trabalho são: Jean Le Gac, Eleanor Antin, Gilbert & George, Vera Frenkel, General Idea, Evergon, Cindy Sherman, Yasumasa Morimura, Sophie Calle, Mathew Barney, Bob Flanagan, Tracey Emin, Sonia Rapoport, Erwin Wurm, Raymond April, etc.

Num não menos sentido literal, parece inegável que o sentido e a afectação de muitos trabalhos artísticos do século XX, desde Duchamp a Warhol ou a Beuys, são praticamente indissociáveis de algumas atitudes e poses consciente e deliberadamente cultivadas pelos seus autores. Esta extensão, ou melhor dito, esta sangria comportamental do autor para o seu trabalho, mas no qual não está inscrito nem o corpo do artista nem o trabalho, constitui provavelmente um dos decisivos paratextos do século passado. Senão vejamos.

Uma ficção que é fabricada dentro (de dentro/no interior) e com o mesmo é uma ficção que se compõe da imaginação por um processo que se apropria de fragmentos do outro (quer seja o outro encontrado em nenhum interior de nós mesmos), quer seja o outro encontrado dentro de cada um mesmo - pela exploração da sua/nossa singularidade, explorando o self ou explorando a própria estranheza, ou através dos fragmentos que fazem o outro, ou os fragmentos de outros e do nosso meio.

Parece ser evidente o aumento do número de artistas a trabalhar a partir de materiais auto-fabricados, ou seja a partir de si. Este fenómeno pode ser associado ao mundo actual, em que o excesso de informação e de contra-informação desorienta, para além da velocidade máxima a que vivemos a nossa própria vida não permitir comunicar, por via de um desejo íntimo - cada vez mais público, por isso paradoxal, de ter, viver, conhecer e experimentar mais.

Sendo este excesso de modernidade um facto da nossa existência, ele produz, ao contrário do que se poderia esperar, novas aproximações ao mesmo, qual boomerang. Essa vontade de abertura ao outro é devolvida pela contingência do seu fechamento. Logo, promove a possibilidade de auto-reflexão, isto é, sem querer estamos de volta a nós mesmos por falta de outros ou, quanto muito, participamos na sua constituição. Isto, pelo menos, é a ilusão que temos. Quando este processo é observado no campo artístico e efectivada a distância crítica, resulta num processo do processo, ficando marcado por um certo grau da abstracção. Os artistas, como vimos, produzem a sua arte a partir dos seus dados, materiais, questões, onde muitas vezes, por isso, os vemos permanecer numa dimensão processual, onde qualquer tipo de finalidade é rejeitada. Também pode ser o negativo de um trabalho sobre si, seja autobiográfico ou autoficcional. Importa não esquecer isso.

Mas voltemos ao lado positivo, que é como quem diz, àquilo que nos é permitido ter acesso porque nos foi dado ver. Mas antes disso, fixemos mais uma frase que nos ajudará a definir o que é uma auto-ficção. Nos estudos literários, a auto-ficção é definida, de uma forma estrita, como um exercício em que os autores criam novas personalidades e identidades para si mesmos, mantendo a sua identidade real (o seu nome verdadeiro). Num sentido mais alargado, a sua prática de escrita é híbrida, situando-se entre a autobiografia e o romance.

Em teoria, a autobiografia é caracterizada, entre outras coisas, pela identidade do autor, narrador e personagem principal. É claro que na prática as coisas não são assim tão simples. É possível, por exemplo, que o herói de uma história apresentada como romance tenha o mesmo nome que o autor. Ou, reciprocamente de modo inverso, a personagem principal de uma obra descrita como autobiográfica ser ficcional. A tipologia de casos é extensa, porém a fronteira entre verdade e mentira é sempre ténue e à volta deste género formulam-se sempre imensas questões. Ultimamente, tem-se instalado a premissa de que qualquer autobiografia contém elementos de ficção e afirmado que qualquer romance é autobiográfico, pelo menos até um certo ponto. Neste sentido, a auto-ficção pode ser considerada, segundo Olivier Asselin e Johanne Lamoreux num texto intitulado: “Autofictions. Les identités électives”, o género dos géneros.

Apropriando-me do discurso daqueles autores, torna-se necessário, porém, ir mais além nestas oposições simples. Habitualmente a ficção está contra o facto: a ficção é usada como sinónimo de imaginário e em oposição ao real, ou como sinónimo de falsidade em oposição a verdade. E mesmo a palavra ficção pode ser entendida doutra maneira, tal como a sua etimologia indica: a palavra latina fingere significa imaginar, mas só em sentido figurado; literalmente significa moldar/dar forma a/ talhar/modelar. Neste sentido, a auto-ficção pode ser outra maneira de expressar a transformação do eu/self (qual escultura do eu), e a  auto-modelação, ao mesmo tempo que sublinha a importância da invenção destas práticas.

Autobiografia e auto-ficção: duas formas de subjectivação
Esclareça-se que a auto-ficção não é exclusivamente um fenómeno moderno, nem apenas ligado à prática artística. Foucault, na sua História da sexualidade, desenha uma genealogia das “formas de subjectivação”, em que chama, indiscriminadamente, “práticas do eu”, “técnicas do eu” “exercícios do eu”, “estética da existência”, “artes da existência” e, ainda, “arte de viver”. Estas formas de subjectivação não são sempre meios de individualização (ou de “disciplina”, como parece acreditar em Vigiar e Punir). Mais propriamente, parecem ser dotadas de uma habilidade que pode tornar o campo para inventar práticas alternativas. Foucault define estas “artes da existência” como acções intencionais e voluntárias pelas quais os seres humanos não só se colocam regras, como também procuram transformar-se, alterando a sua singularidade, e para tornar a sua vida numa obra que transporta alguns valores estéticos e encontra um certo padrão estilístico.

Foucault também encontrou na filosofia - sobretudo na antiga e helénica, que é então entendida não estritamente como um discurso teórico mas, mais largamente, como uma prática – uma prática ética e, acima de tudo, estética. Como um modo de vida e também como uma arte de vida, na medida em que esta consiste num número de actividades físicas e espirituais que estão constantemente a ser reveladas e que podem transformar o corpo e a alma, logo a vida. O filósofo antigo pode ter sido a primeira instância histórica de alguém que praticou a auto-modelação. Com a Cristianização esta dimensão prática da filosofia foi-se eclipsando. Tornou-se uma actividade puramente filosófica. A figura do santo substitui o filósofo no panteão dos modelos de vida. Vistas também como operações associadas a uma estetização do corpo, do eu, da vida de cada um, estas práticas tornaram-se seculares outra vez, quando o Renascimento inventou o cortesão, a Idade Clássica o libertino e, o século XIX, o dandy. Muito possivelmente, na Idade Moderna foi o artista quem se tornou um dos modelos privilegiados da prática da auto-ficção.

Independente do motivo somente quem o consegue explicar é o artista que se expõe. E o que ele intenciona com esta exposição somente ele consegue explicar.

Mas é interessante quando nos metemos nas obras de arte dos outros a fim de tentar compreender o que exatamente ele quis dizer, como ele pensava, o que ele sentiu quando estava produzindo. Isto são apenas especulações. Hoje e sempre, não há como explicar.
E podemos dizer que exatamente por essas peculiaridades que a arte é arte.

O que ela é exatamente? Um segredo que deixou de ser segredo, que foi exposto, mas que simplesmente não quis ser explicado.

Alegria do Passado:

Sonhar em chegar tao longe como eu cheguei.

Alegria do Presente:

Estar ao alcance dos meus sonhos.

Trabalhos dela

Sophie Calle é uma artista na primeira pessoa…


Suite Vénitienne 1980 (Sophie Calle)

Eu segui estranhos na rua. Pelo prazer de os seguir, não por eles me interessarem. Eu fotografa-os sem o seu conhecimento, tomava nota dos seus movimentos,e finalmente perde-los de vista e esquece-los.
No fim de Janeiro de 1980, nas ruas de Paris, segui um homem a de quem perdi de vista por uns momentos, mais tarde no meio da multidão.
Nesse final de tarde, por sorte, ele foi-me apresentado numa inauguração em Hurstville. Durante o desenrolar da conversação, ele disse-me que estava prestes a viajar para Veneza. Foi então que decidi segui-lo.

Análise ao seu trabalho:

" As suas questões desafiavam a relação entre texto e fotografia privada e pública persona, verdade e ficção, absolutamente pioneira e original.
O seu trabalho fotográfico evoca narrativa, afectos e emoções, tocando o receptor, assim como as possibilidades e limitações da fotografia. 
Esta artista trabalha com fotografia e performances, colocando-se em situações como se ela e as pessoas que encontra fossem ficcionais. Ela impõe elementos da sua vida em sítios públicos, criando uma narrativa pessoal, onde ela é igualmente autor e personagem. Ela tem sido denominada detective e voyeurista, e os seus trabalhos envolvem investigações levadas a sério mas também curiosidade natural.
Apesar de, a maior parte do seu trabalho assentar no voyeurismo, Sophie Calle tem permitido que a sua vida pessoal também seja exibida. Ela tornou-se tão intrigada por seguir os seus assuntos inconscientes, involuntários que quis alterar esta relação e tornar-se ela própria o assunto.
Pediu à sua mãe para contratar um detective particular para a seguir, sem que o detective soubesse disso, a sua finalidade era que a investigação pudesse providenciar evidências fotográficas da sua existência.

Exquisite Pain, 1995-2003

Em 1984 recebi uma bolsa do ministério dos negócios estrangeiros Franceses para ir para o Japão por três meses. Parti a 25 de Outubro, sem saber que essa data marcava o início de uma contagem decrescente do fim de uma relação amorosa- nada de surpreendente, mas para mim na altura, o momento mais triste da minha vida. Eu culpei a viagem.

De volta a França, a 28 de Janeiro de 1985, optei pelo exorcismo e falei do meu sofrimento em vez das minhas viagens. Em vez disso, comecei a perguntar a amigos e em encontros ocasionais: " Quando sofreste mais?" Esta partilha terminou quando coloquei um ponto final a esta história, ou quando relativizei a minha dor em relação às outras pessoas. 
O método era radicalmente efectivo: três meses depois, estava curada. O exorcismo funcionou. Temendo uma possível recaída, deixei o projecto. Quando voltei a ele, quinze anos tinham passado.




No sex last night 

Não vivíamos juntos há mais de um ano, mas a nossa relação tinha piorado de tal forma que não nos falávamos. Eu sonhava em casar com ele. Ele sonhava em fazer filmes. Para o convencer a viajar pela América comigo, sugeri que fizéssemos um filme durante a viagem. Ele concordou.
A nossa ausência de comunicação deu a ideia de nos equiparmo-nos com câmaras separadas, fazendo delas as únicas confidentes das nossas respectivas frustrações e secretamente confidenciando todas as coisas que não dizíamos um ao outro.
Estabelecidas as regras, a 3 Janeiro de 1992 partimos de Nova Iorque no seu Cadilac prateado em direcção à California. 

Livro de Sophie Calle - did u see me

Em jeito de conclusão
Tal como vimos, os artistas de hoje, de uma maneira exemplar e talvez mais do que ninguém, não só inventaram as suas próprias regras de conduta mas também, ao ir o mais longe que puderam na transformação do seu próprio corpo, propuseram e utilizaram as suas vidas como obras, carregando-as de valor estético, marcadas por acções performativas e por figuras de estilo nos seus discursos que perpetuam os seus impactos, criando condições para a sua inscrição na história das artes performativas e do corpo.

Olhando para trás, podemos concluir que muitos artistas contemporâneos produzem a sua arte com base num trabalho em torno das suas personalidades resultantes das suas histórias de vida. Deste modo, a arte que resulta desse modus operandi para lá de nos colocar perante algo que nos interpela, porque nos faz pensar nas nossas próprias vidas, demonstra-nos o carácter processual das práticas artísticas contemporâneas. Há obras que são levadas a cabo para responder a inquietações existenciais, em que a ilusão de qualquer finalidade é rejeitada, desobrigando-se de almejar um resultado passível de provocar emoção estética. Uns porque não suportam a realidade, querendo fugir dela, outros porque alegremente se lançam na descoberta de outros que os habitam interiormente, não querendo mais cativá-los, sob a pena de não conseguirem lidar com essa multiplicidade e nessa imersão nem sempre se consegue e deseja trazer à superfície os resultados desse aprofundamento. Porque tomar consciência de e ser múltiplo de si pode isolar qualquer um nesse jogo dramático.

É sabido que enfrentar essa outridade requer tempo, desaconselhando a precipitação, dado o elevado risco de passagem para um estado patológico indesejado. Sendo impossível de calcular o tempo necessário para esse confronto, a partilha deixa de ser um objectivo. É claro que isto pode resultar numa tremenda decepção do ponto de vista do espectador, até numa revolta, caso tenha sido anunciado uma data ou um período de acesso, por via da ofensa que pode ser acompanhada da seguinte pergunta: - O que é que eu tenho a ver com isso? É legítimo, tanto a proposta, quanto a reacção. Não há volta a dar. Essa é uma das querelas da arte contemporânea: a discrepância entre a expectativa criada a partir de uma sinopse, texto de apresentação ou outro qualquer ponto de partida nos espectadores vs o resultado final (quando partilhado). Não há obrigações, nem direitos, muito menos deveres. De parte a parte. Tudo é permitido. Quer dizer, quase tudo, porque ainda não se sabe o que aí vem.

 




Douleur exquisite é uma expiação amorosa, narrada pelo viés da memória. Narra uma história através das fotografias e escritos num diário de viagem vivida por ela, o que permite uma análise de dicotomia: real e ficcional. As trajetórias individuais e as suas relações com outros gêneros literários, entre os quais o diário, as cartas e as memórias, consistem num dos assuntos mais discutidos na modernidade, principalmente no âmbito dos estudos literários. como consequência dos estudos do gênero autobiográfico, os limites entre real e ficcional são, frequentemente abordados.
Douleur exquisite inclui-se nessa categoria de textos em que a fidelidade ao real é posta em xeque, o que possibilita um estudo da sua narrativa à luz da autobiografia e da autoficção.

O seu trabalho articula-se nos moldes da arte contemporânea. O seu olhar para a arte dispensa um cuidado com o corpo, com o espaço e com os suportes, tendo a fotografia como mote. Ela passeia pelas cidades, como um flâneur, e tenta conhecê-las ou reconhecê-las através da lente da câmara fotográfica. Segue transeuntes e desconhecidos e fotografa-os, busca vestígios na memória de pessoas, através de entrevistas e reinventa as suas respostas; fotografa a si mesma, como performer, apropria-se de objectos e de histórias para compor a sua arte, a sua obra pode ser conhecida através de instalações de fotografias , exposições, que depois são transpostos para formatos de livros.

A artista propõe uma recriação da realidade, um jogo de olhares ( e de espelhos), em que é um voyeur, mas também se deixa ver pelo outro; um jogo de sombras, em que se persegue o outro, mas também se deixa seguir; e um jogo de palavras, no qual interroga pessoas e recria ou reinventa as respostas.

O resultado é La Filature (1981), exposição que apresenta os diferentes olhares cruzados descritos através de relatos e fotografias distintas feitas num único dia – as fotografias da artista, tiradas pelo detective, e as imagens deste, feitas por uma terceira pessoa contratada por Sophie Calle, além da narração da própria artista sobre o seu dia, o relatório do detective sobre as suas actividades, e ainda o relato de uma outra pessoa sobre as acções do detective.

uma forma de propiciar um encontro consigo mesma. Ser seguida seria abrir-se para o olhar capaz de devolver aquilo que é olhado, se constituído como sujeito, um ver o que nos olha, como sugere Georges Didi- Huberman: “O que vemos só vale – só vive – nos nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”.

O “diário de viagem” de Sophie C. coloca o leitor diante de uma situação de mudança dolorosa, uma experiência da própria narradora, cujo relato vem acompanhado de noventa e duas fotografias referentes ao mesmo número de dias que durou a viagem da artista.
O que encontramos em Douleur exquisite é uma presentificação do passado, com a vida e a obra da artista justapondo-se, como num texto autobiográfico. todavia, se a autobiografia possibilita uma primeira abordagem do texto de Douleur exquise, por vários momentos o conceito de autoficção parece-nos ser o mais apropriado para este exercício.

A autobiografia é comumente analisada na sua forma narrativa. No que se refere à fotografia , ela pode se valer da mesma premissa que a autobiografia: o de legitimar um referente, o de atestar que “isso que vejo encontrou-se lá, nesse lugar que se estende entre infinito e sujeito (operator ou spectador); ele esteve lá, e todavia de súbito foi separado; ele esteve absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto, já deferido. A fotografia, mais que o texto, pode ser um elemento de autentificação do autobiográfico. Segundo Barthes,

“a linguagem é, por natureza, ficcional; para tentar tornar a linguagem inficcional é preciso um enorme dispositivo de medidas: convoca-se a lógica, ou na sua falta, o juramento; mas na Fotografia, por sua vez, é indiferente a qualquer revezamento: ela não inventa; ela é a própria autentificação”, afirma o autor.

As fotografias em Douleur exquisite não possuem autonomia num outro contexto; é o texto que preenche as lacunas deixadas por elas, colocando me dúvida a afirmação de Barthes de que pelas fotografias “o poder da autentificação sobrepõe-se ao poder de representação.”










Bibliografia

ASSELIN, O. & LAMOREUX, J. (2002) Autofictions. Les identités électives, “Parachute”, nr. 105. Montreal, pp. 10-20.

FOUCAULT, Michel, (1994), História da Sexualidade II - O Uso dos Prazeres. Relógio d' Água, Lisboa. ISBN 9789727082414.

STEINER, B. & YANG, J., (2004), Autobiography. Thames & Hudson: Londres.










 

 

 

 

 

 














[1] ORWELL, George, in STEINER, B. & YANG, J. (2004), Autobiography. Thames & Hudson: Londres: 58.
[2] Caroline G. Heilbrun, teórica feminista americana, é professora, escritora e romancista de policiais.
[3] HEILBRUN, C. G., in STEINER, B. & YANG, J., Op. Cit.: 94.
[4] BOLTANSKY, Christian, Idem: 68.
[5] ROSENBORG (H.), Idem: 57.
[6] Persona deriva do verbo personare, ou seja "soar através de". Era o nome da máscara que os actores do teatro grego usavam. A sua função era tanto a de dar ao actor a aparência que o papel exigia, quanto a de amplificar a sua voz, permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores.
[7] Refiro-me, concretamente, a instalações com dispositivos passíveis de serem accionados pelos visitantes, que permitem um contacto mais implicativo e, quiçá, diferenciado da obra.
[8] SCHÄFER, Julia, in STEINER, B. & YANG, J., Op. Cit.: 187.
[9] SHERMAN, C. Idem: 67.
[10] ROSE, Ph. Ibidem: 166.
[11] ANG, J. Ibd.: 103.
[12] BOLTANSKI, Ch. Ibd.: 70.
[13] WARHOL, A. Ibd.: 52
[14] Enunciado da autoria de Philippe LeJeune citado pelos autores no texto de entrada: Writing identity: On autobiography in Art.
[15] [15] STEINER, B. & YANG, J., Ibd.: 15.
[16] STEINER, B. & YANG, J. Ibd.: 27.
[17] STEINER, B. & YANG, J. Ibd.
[18] ASSELIN, Olivier, LAMOUREUX, Johanne, Autofictions, or Elective Identities, “Parachute”, 105, p. 11.