Trabalho do Seminário:
Imagens Contemporâneas
As noções de autobiografia vs. autoficção
no trabalho de Sophie Calle
Docente: Prof. Doutora Margarida Medeiros
Trabalho realizado por Andreia Torres
dezembro de 2011
0. Intro
Este
trabalho irá explorar as noções de biografia, autobiografia e autoficção e a sua aplicação ao trabalho artístico,
em particular à obra de Sophie Calle. Deste modo, é nosso objectivo e a partir
dessas formas de subjectivação, testar a sua pertinência como pontos de entrada
nalguns trabalhos da artista francesa, procurando evidenciar os processos e os
modos pelos quais essas formas têm servido como motor de criação das suas
operações artísticas, assim como grelha de leitura do ponto de vista da
recepção e da sua crítica a partir do biografismo (olhar perscrutor da ligação entre arte e vida do
artista, mas também consiste na tentativa de explicar uma obra em
relação à vida do autor.).
O tratamento desse material
de raiz autobiográfica suscita desde logo um conjunto de perguntas que
demonstram a complexidade do tema e a diversidade possível dos pontos de vista
sobre o mesmo. Traduzindo isto em questões, pergunte-se
então: o que é uma autobiografia? O que é uma autoficção? Qual é a diferença
entre uma autobiografia e uma autoficção? Em que medida a exploração
autobiográfica se tornou num dos pontos de partida preferidos da artista para a
criação da sua obra? Como é que ela, em consequência, se tornou uma porta de
entrada para a análise dos seus trabalhos? Partindo de vários trabalhos,
passíveis de serem encarados como “exercícios do eu” – na formulação de
Foucault - procurar-se-á demonstrar como a dedicação e a utilização de material
ligado à (sua) vida vivida e ficcionada, logo aqui entendida de modo plural,
providencia e despoleta a criação.
Deste
modo, procurarei a partir das definições de autobiografia e de autoficção (Serge
Dubrovsky) analisar o trabalho da artista Sophie Calle (especialmente em Suite Vénitienne,
No Sex Last night, Prenez soin
de vous, entre outros) e
como estes “exercícios do eu” se repercutem na sua produção artística,
reflectindo, sempre que possível, sobre o alcance desses modus operandi nas práticas de outros
artistas que a partir de si desenvolvem projectos que fazem das suas vidas
reais e ficcionadas a matriz das suas obras.
sobre o conceito de autoficção entendido como
uma estratégia da literatura
contemporânea capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção
e de tornar híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no
centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não mais
como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para
performar a própria imagem de si autoral que surge nos textos. O foco da investigação concentrar-se-á
na produção de alguns autores que se lançaram na rede. (Alguns nomes: Clarah
Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian)
Procurar-se-á, pois, discorrer sobre a os binómios
arte e vida. EXPLORAR MELHOR ISTO
1. À procura das respostas necessárias – parte I
O que é uma autobiografia? Para muitos autores, artistas,
pessoas comuns e outras, uma autobiografia genuína é uma tarefa impossível.
Porquê? Porque todas as pessoas projectam uma imagem particular de si próprias,
mas raramente esta imagem coincide ou está de acordo com as percepções dos
outros. Todas as pessoas carregam memórias do passado, mas geralmente estas são
distorções selectivas da verdade. Todas as pessoas têm uma história de vida
para contar, mas normalmente ela é mais próxima da ficção do que da realidade.
Somos assim. É caso para dizer, com toda a propriedade, c’est la vie.
À autobiografia está, muitas
vezes, associada a ideia de verdade, pelo que ela representa um meio para o(a)
autobiografado(a) ajustar contas com outras versões da sua vida (na maior parte
das vezes versões não autorizadas pelo/a próprio/a), ou para não abdicar ele/a
próprio/a de fazer a história da sua vida e não deixar (só) para outros que a
façam por si.
É sabido que à ideia de
verdade autobiográfica está associada a ideia de desvelação de aspectos menos
positivos, episódios em que o autobiografado(a) sai derrotado(a), ou, pelo
menos, tocado(a) no seu estatuto social. Eis o que George Orwell diz a este
respeito: “An autobiography is only to be
trusted when it reveals something disgraceful. A man who gives a good account
of himself is probably lying, since any life when viewed from the inside is
simply a series of defeats.”[1]
Por outro lado, à prática autobiográfica também anda associada a noção de
ficção porque, tal como nos diz Caroline G. Heilbrun[2]: “Autobiography is not the story of a life; it’s
the re-recreation or the discovery of one. In writing of experience, we
discover what it was, and in writing create the pattern we seem to have lived.
Simply put, autobiography is reckoning.”[3]
Assim sendo, fala-se aqui de
uma operação de controlo sobre algo que apesar de poder ser partilhado por mais
pessoas é a manifestação de um desejo de controlo da realidade, da criação de
um efeito para si e só depois para os outros. A este propósito, podemos lembrar
também o que disse Christian Boltanski: “Anyway I’m rather constructed person, and my
reality is disappearing more and more, I suppose it’s partly like that for
everyone, artist or not. You decide what bit of yourself is to show or not.”[4]
Em termos de modus operandi artístico, seja no campo performativo, seja no campo
visual, o trabalho em torno da autobiografia demonstra, muitas vezes e antes de
mais, o interesse que os artistas têm no questionamento e na definição dos seus
limites. Quer isto dizer que se procura, através da reflexão e do tratamento do
material autobiográfico, perceber o significado dos movimentos de entrada ou de
saída de si mesmo e delimitar as fronteiras relativas à identidade e às noções
de público vs. privado, mas também às
noções de representação ou de autenticidade dos artistas, e, também e reversamente,
dos espectadores.
Atestando a propósito a ideia
de que é quase impossível não colar o texto, imagem, a quem o diz, ainda para mais quando foi
escrito pelo próprio, a frase de Andy-Warhol “No matter how good you are, if you are not promoted right, you won’t
be remembered”,. Aproveitando a referência, importa dizer que Andy Warhol
pode e deve ser visto como um dos artistas em que a exploração autobiográfica
terá determinado a sua vasta obra. Warhol dizia que “a vida e vivê-la
influenciaram-me mais do que as pessoas”. Ou, se quisermos, “The primary creation of Andy Warhol is Andy
Warhol himself.“[5]
À procura das respostas necessárias – parte II
Afinal, o que é uma autobiografia? Continuando a busca de
uma definição de autobiografia e a sua aplicação no campo artístico, importa
agenciar uma obra cooperante para a circunstância intitulada Autobiography, de Barbara Steiner e Jun
Yang. Para além de localizar os lugares, situando-os no tempo, e de definir as
funções da autobiografia, esta obra permite-nos entender a forma como a
autobiografia nos catapulta para a criação artística. A potencialidade da
autobiografia em se constituir como chave-mestra para entrar no campo artístico
é um aspecto importante deste livro. Abra-se a obra e somos levados de imediato
a várias partes. Quais? A muitas divisões. É que os capítulos são nomeados
pelos autores com base na metáfora da casa, ficando assim o livro dividido em rooms: Entrance. Writing identity: on autobiography in art. Room 1. Alter Ego. Room 2. Disappearance.
Room 3. Facts. Room 4. Authenticity.
Room 5. Hybrids. Room 6.
Race. Room 7. Political Systems. Room 8. Media. Room 9. Self-Reflection.
Percorrendo a casa, são-nos apresentados vários exemplos
de trabalhos que nos ajudam a perceber o lugar e a função da autobiografia no
mundo contemporâneo. Organizado em “divisões/quartos” temáticos, este livro
reflecte uma variedade alargada de atitudes e práticas artísticas.
Alguns artistas resgatam o material autobiográfico para
revelar os aspectos privados das suas vidas em actos de partilha de intimidade,
outros procuram ocultar-se por detrás de alter
ego inventados, ou de imagens cuidadosamente desenhadas, ou de persona[6], opção
correspondente a uma dimensão intermédia de representação entre o eu, ou o si e
a personagem. Outros apresentam os factos puros das suas rotinas diárias como
um registo ou uma gravação da sua existência, enquanto outros ainda tentam
capturar-se no espelho da auto-reflexão. Alguns exploram a influência dos media ou dos sistemas políticos e
sociais no sentido do: quem somos nós?
Enquanto outros exploram o impacto do seu background
étnico ou racial na construção de uma auto-identidade - a necessidade de
projectar uma imagem através da segurança da família, ou à luz de um olhar
público hostil.
Todos se questionam como é formada a identidade no mundo
global e todos exploram o papel de mudança do indivíduo na sociedade moderna.
Em resumo, estes artistas expandem a nossa compreensão sobre aquilo que
significa estar vivo hoje. Eles usam a arte para mostrar os modos complexos com
que criamos histórias sobre nós próprios. Em suma, todos nos ajudam a
compreender o mundo em que vivemos.
Assim, o trabalho de inúmeros criadores é convocado em
larga escala e disposto nas divisões acima referidas, sendo uma das grandes
virtudes desta obra a assinalável abrangência temática, estética, geográfica e
(pluri/trans)disciplinar das matérias abordadas. A apresentação e
contextualização dos artistas e respectivas obras, assim como a reprodução de
discursos próprios e a inserção de imagens documentais dos trabalhos, contribui
para uma assimilação efectiva dos conteúdos, sendo o resultado final uma
espécie de acompanhamento assistido à casa, uma espécie de visita guiada.
Através do agenciamento do trabalho dos artistas que é
efectuado quer ao nível da sua formalização, quer ao nível da sua apresentação,
observamos as diversas formas como se trabalha a partir do material
autobiográfico. Essas formas variadas de trabalhar demonstram:
1. uma pluralidade de atitudes: a. revelação de aspectos
privados da sua vida (visível, por exemplo, em Nan Goldin e em Sophie Calle);
b. ocultação através da criação de alter
ego inventados e da produção de imagens self-fashioning
(como se pode ver no trabalho de Ric Pacquée (1954- ); c. desdobramento de si através de exercícios de persona que, como já referimos, é uma instância intermédia entre o meu eu
social e uma personagem dita teatral [isso é particularmente evidente no
trabalho de Eleanor Antin (1935- )].
2. uma variedade de práticas: d. a exposição de factos
das rotinas diárias como um registo documental da sua existência [veja-se os
diários de Andy Warhol (1928-1987)]; e. a auto-reflexão a partir de um olhar no
espelho que captura traços distintivos [convoque-se aqui o trabalho de Cindy
Sherman (1954- )]; f. a medição da influência dos media e dos sistemas políticos e sociais [um exemplo, o de Jeff
Koons (1955- )], assim como do impacto do seu background étnico ou racial na construção da identidade.
Todos estes impactos e ligações diversas com a obra
destes artistas ao nível dos modos de recepção permitem-nos ver como se opera a
negociação com a obra segundo os modelos de interactividade visível no contacto
directo, físico, apreendido e testemunhado por outros: autor(es) e
espectador(es) em situações artísticas de co-presença e visitantes em objectos
artísticos visuais[7], ou
invisível no recolhimento dos resultados da actividade mental: pensamentos,
associações, remissão para referências estabilizadas, etc., e de interpassividade,
ou seja, estamos lá mas é como se não estivéssemos (mostrando que não estamos
inelutavelmente condenados a ser manipulados, nem sempre disponíveis para a
troca, nem formatados para uma apropriação sempre resultante da tensão entre o
dispositivo e o nosso corpo-receptáculo).
O conjunto de atitudes e modus operandi artísticos e formas de recepção assinalados fazem
ressaltar uma série de questões resultantes daquilo a que Foucault chamou “práticas do eu”. A saber:
1. autobiografia (“The
authentic autobiography not only
becomes a myth; the myth itself becomes a subject of the work.”[8]) vs
auto-ficção: “It has nothing at all to do
with me. I work with myself, that’s my material somehow, but the finished
photograph has something more to offer than reflections of my personality…”[9];
2. auto-conhecimento
(“If I don’t know such basic things
about myself, who does?” [10]) vs
representatividade do mundo (“Whenever I
watch my own videos I don’t see me personally – It feels watching somebody
else’s story”)[11] vs inclusão do colectivo a partir de si (“the
really interesting autobiographies are those that speak not of the author but
of every reader”[12]);
3. os certificados de autencidade (“Who wants the truth? That’s what show-business is for – to prove that
it’s not what you are that counts, it´s what you think you are.”[13]) vs as
suspeitas de falsidade ultrapassadas pelo “pacto
autobiográfico”[14]: “in which a trinity of identities had to be
established for and accepted by the reader.”[15]
4. a
delimitação das fronteiras entre realidade e ficção: “Autobiography is the product of various factores – real experiences,
together with things heard, seen, read, narrated and invented. Fact and fiction
are inextricably woven together.”[16]
5. o espelhismo dos materiais autobiográficos: quem somos nós? – “Autobiographers observe themselves, and open themselves up to
observation by their readers. The process equates with looking in a mirror…”[17]
À procura de respostas necessárias – parte III
O que é a autoficção? O termo
autoficção foi empregado pelo francês Serge Doubrovski para nomear um exercício
ficcional criado como resposta à análise de Philippe Lejeune sobre a
autobiografia. O conceito de autoficção, tal como foi entendido por Doubrovski,
inscreve-se na fenda aberta pela constatação
de que uma narrativa de si, quer seja
reminiscência ou não,
tende para a ficção, donde que todo desejo de ser sincero é um trompe-l’oeil. A autoficção deve ser
entendida, então, como um apagamento do eu biográfico, capaz de constituir-se
apenas nos deslizamentos e amplificações do seu próprio esforço em
apresentar-se como um eu, através da operação de consubstanciar-se
textualmente. Um eu que se descentraliza, recriando-se através de um exercício
livre de transformação que almeja uma alteridade capaz de oferecer a plenitude,
qual resposta eficaz à falta que preenche os vazios existenciais. A isto
pode-se chamar self-fashioning.
Nos estudos literários a
autoficção é definida, de uma estrita, como “trabalhos/exercícios em que os
autores criam novas personalidades e identidades para si mesmos, onde, ao mesmo
tempo, mantém a sua identidade real (o seu nome verdadeiro),” e, num sentido
mais alargado, como uma prática híbrida, situada entre a autobiografia e o
romance.”[18]
In literary studies, autofiction is defined,
strictly speaking, as "works through which authors create new
personalities and identities for themselveworks through which authors create
new personalities and identities for themselves, while at the same time
maintaining their real identity (their real name)," and, in a wider sense,
as a hybrid practice, situated between autobiography and the novel
Uma ficção que é
fabricada dentro (de dentro/no interior) e com o mesmo é uma ficção que se
compõe da imaginação por um processo de apropriar-se de fragmentos do outro, se
(quer seja o outro encontrado nenhum interior de nós mesmos) isto ser outro
encontrado dentro de cada um mesmo, (pela exploração da nossa singularidade)
explorando o self's própria estranheza, o self's própria estranheza, (ou através
Dos os fragmentos fazem outro) ou os fragmentos de outros e do nosso meio. Que
os materiais do auto-fabrico tenham aumentado é um fenômeno de um mundo no qual
um excesso de reinos de informações, em que a própria vida está acelerando e
temos maior acesso a coisas; um mundo no qual um excesso da modernidade é um
fato da nossa existência. Este excesso da modernidade cria novas aproximações
ao mesmo: ele cria a possibilidade de escolha
quem você é, e especialmente de imaginar isto novo mesmo, da participação
na sua constituição. Isto pelo menos é a ilusão que temos. Quando este processo
é executado no reino da arte, ele adquire a distância crítica e fica um
processo do processo. Fica marcado por certo grau da abstração. Os artistas
formam a sua arte com base em e as suas .personalidades, mas com a arte
permanecemos em um estado do processo. A ilusão de qualquer finalidade é
rejeitada. ”
O corpo do artista e a sua imagem
Apesar do termo ter sido
raramente usado, enquanto categoria definidora e operativa, na arte
contemporânea, os artistas têm-na praticado intensivamente. As recentes
releituras da body-art e da
performance revelaram que muitos artistas usaram os seus próprios corpos como
matéria principal do seu trabalho. Trabalharam e continuam a trabalhar o seu
corpo de diversas maneiras, através de actos isolados ou repetidos, momentâneos
ou duradouros, através de exercício, dietas e rituais, através de marcas
inscritas e mutilações, através de cirurgia e através da genética, e através de
uma hibridização do corpo e máquina, podendo um dia efectivar a conversão do
corpo numa forma pós-humana. Alguns exemplos de artistas que trabalharam e
continuam a trabalhar nesta área: Vito Acconci, Gina Pane, The Viennese
Actionists, Chris Burden, Carolee
Schneeman, Marina Abramović,
Roger Racine, Stelarc, Orlan, Janine Antoni, Eduardo Kac, entre outros.
A cultura de si
Por outro lado, temos outros
artistas que se tomaram a si próprios como motif
do seu trabalho. Estes artistas desenvolveram novas formas de representação
do eu, através da invenção de pseudónimos, alter
ego e vidas imaginárias, através da construção de novas imagens de si e da
criação de novas narrativas. Sempre a partir dos factos da vida de cada um,
através de auto-retratos ficcionais, autobiografias e mitologias pessoais;
através do disfarce/da dissimulação: maquilhagem, figurino e protética, através
de expressão, actuação e encenação, e através da manipulação de texto e imagem,
por exemplo, em livros de artistas, fotografia encenada, imagens digitais, ou
através da internet. Exemplos de alguns artistas a cabimentar nesta área de
trabalho são: Jean Le Gac, Eleanor Antin, Gilbert & George, Vera Frenkel,
General Idea, Evergon, Cindy Sherman, Yasumasa Morimura, Sophie Calle, Mathew
Barney, Bob Flanagan, Tracey Emin, Sonia Rapoport, Erwin Wurm, Raymond April,
etc.
Num não menos sentido
literal, parece inegável que o sentido e a afectação de muitos trabalhos
artísticos do século XX, desde Duchamp a Warhol ou a Beuys, são praticamente
indissociáveis de algumas atitudes e poses consciente e deliberadamente
cultivadas pelos seus autores. Esta extensão, ou melhor dito, esta sangria
comportamental do autor para o seu trabalho, mas no qual não está inscrito nem
o corpo do artista nem o trabalho, constitui provavelmente um dos decisivos
paratextos do século passado. Senão vejamos.
Uma ficção que é
fabricada dentro (de dentro/no interior) e com o mesmo é uma ficção que se
compõe da imaginação por um processo que se apropria de fragmentos do outro
(quer seja o outro encontrado em nenhum interior de nós mesmos), quer seja o
outro encontrado dentro de cada um mesmo - pela exploração da sua/nossa
singularidade, explorando o self ou
explorando a própria estranheza, ou através dos fragmentos que fazem o outro,
ou os fragmentos de outros e do nosso meio.
Parece ser
evidente o aumento do número de artistas a trabalhar a partir de materiais
auto-fabricados, ou seja a partir de si. Este fenómeno pode ser associado ao
mundo actual, em que o excesso de informação e de contra-informação desorienta,
para além da velocidade máxima a que vivemos a nossa própria vida não permitir
comunicar, por via de um desejo íntimo - cada vez mais público, por isso
paradoxal, de ter, viver, conhecer e experimentar mais.
Sendo este
excesso de modernidade um facto da nossa existência, ele produz, ao contrário
do que se poderia esperar, novas aproximações ao mesmo, qual boomerang. Essa vontade de abertura ao
outro é devolvida pela contingência do seu fechamento. Logo, promove a
possibilidade de auto-reflexão, isto é, sem querer estamos de volta a nós
mesmos por falta de outros ou, quanto muito, participamos na sua constituição.
Isto, pelo menos, é a ilusão que temos. Quando este processo é observado no
campo artístico e efectivada a distância crítica, resulta num processo do
processo, ficando marcado por um certo grau da abstracção. Os artistas, como
vimos, produzem a sua arte a partir dos seus dados, materiais, questões, onde
muitas vezes, por isso, os vemos permanecer numa dimensão processual, onde
qualquer tipo de finalidade é rejeitada. Também pode ser o negativo de um
trabalho sobre si, seja autobiográfico ou autoficcional. Importa não esquecer
isso.
Mas voltemos ao
lado positivo, que é como quem diz, àquilo que nos é permitido ter acesso
porque nos foi dado ver. Mas antes disso, fixemos mais uma frase que nos
ajudará a definir o que é uma auto-ficção. Nos estudos literários, a
auto-ficção é definida, de uma forma estrita, como um exercício em que os
autores criam novas personalidades e identidades para si mesmos, mantendo a sua
identidade real (o seu nome verdadeiro). Num sentido mais alargado, a sua
prática de escrita é híbrida, situando-se entre a autobiografia e o romance.
Em teoria, a autobiografia é
caracterizada, entre outras coisas, pela identidade do autor, narrador e
personagem principal. É claro que na prática as coisas não são assim tão
simples. É possível, por exemplo, que o herói de uma história apresentada como
romance tenha o mesmo nome que o autor. Ou, reciprocamente de modo inverso, a
personagem principal de uma obra descrita como autobiográfica ser ficcional. A
tipologia de casos é extensa, porém a fronteira entre verdade e mentira é
sempre ténue e à volta deste género formulam-se sempre imensas questões.
Ultimamente, tem-se instalado a premissa de que qualquer autobiografia contém
elementos de ficção e afirmado que qualquer romance é autobiográfico, pelo
menos até um certo ponto. Neste sentido, a auto-ficção pode ser considerada,
segundo Olivier Asselin e Johanne Lamoreux num texto intitulado: “Autofictions.
Les identités électives”, o género dos géneros.
Apropriando-me do discurso
daqueles autores, torna-se necessário, porém, ir mais além nestas oposições
simples. Habitualmente a ficção está
contra o facto: a ficção é usada como sinónimo de imaginário e em oposição ao real, ou como sinónimo de falsidade em oposição a verdade. E mesmo a palavra ficção pode
ser entendida doutra maneira, tal como a sua etimologia indica: a palavra
latina fingere significa imaginar,
mas só em sentido figurado; literalmente significa moldar/dar forma a/
talhar/modelar. Neste sentido, a auto-ficção pode ser outra maneira de
expressar a transformação do eu/self
(qual escultura do eu), e a
auto-modelação, ao mesmo tempo que sublinha a importância da invenção
destas práticas.
Autobiografia e auto-ficção: duas formas
de subjectivação
Esclareça-se que a
auto-ficção não é exclusivamente um fenómeno moderno, nem apenas ligado à
prática artística. Foucault, na sua História
da sexualidade, desenha uma genealogia das “formas de subjectivação”, em
que chama, indiscriminadamente, “práticas do eu”, “técnicas do eu” “exercícios
do eu”, “estética da existência”, “artes da existência” e, ainda, “arte de
viver”. Estas formas de subjectivação não são sempre meios de individualização (ou
de “disciplina”, como parece acreditar em Vigiar
e Punir). Mais propriamente, parecem ser dotadas de uma habilidade que pode
tornar o campo para inventar práticas alternativas. Foucault define estas
“artes da existência” como acções intencionais e voluntárias pelas quais os
seres humanos não só se colocam regras, como também procuram transformar-se,
alterando a sua singularidade, e para tornar a sua vida numa obra que
transporta alguns valores estéticos e encontra um certo padrão estilístico.
Foucault também encontrou na
filosofia - sobretudo na antiga e helénica, que é então entendida não
estritamente como um discurso teórico mas, mais largamente, como uma prática –
uma prática ética e, acima de tudo, estética. Como um modo de vida e também
como uma arte de vida, na medida em que esta consiste num número de actividades
físicas e espirituais que estão constantemente a ser reveladas e que podem
transformar o corpo e a alma, logo a vida. O filósofo antigo pode ter sido a
primeira instância histórica de alguém que praticou a auto-modelação. Com a
Cristianização esta dimensão prática da filosofia foi-se eclipsando. Tornou-se
uma actividade puramente filosófica. A figura do santo substitui o filósofo no
panteão dos modelos de vida. Vistas também como operações associadas a uma
estetização do corpo, do eu, da vida
de cada um, estas práticas tornaram-se seculares outra vez, quando o
Renascimento inventou o cortesão, a Idade Clássica o libertino e, o século XIX,
o dandy. Muito possivelmente, na
Idade Moderna foi o artista quem se tornou um dos modelos privilegiados da
prática da auto-ficção.
Independente do
motivo somente quem o consegue explicar é o artista que se expõe. E o que ele
intenciona com esta exposição somente ele consegue explicar.
Mas é
interessante quando nos metemos nas obras de arte dos outros a fim de tentar
compreender o que exatamente ele quis dizer, como ele pensava, o que ele sentiu
quando estava produzindo. Isto são apenas especulações. Hoje e sempre, não há
como explicar.
E podemos dizer
que exatamente por essas peculiaridades que a arte é arte.
O que ela é
exatamente? Um segredo que deixou de ser segredo, que foi exposto, mas que
simplesmente não quis ser explicado.
Alegria do
Passado:
Sonhar em chegar
tao longe como eu cheguei.
Alegria do
Presente:
Estar ao alcance
dos meus sonhos.
Trabalhos dela
Sophie Calle é uma artista na
primeira pessoa…
Suite Vénitienne
1980 (Sophie Calle)
Eu segui estranhos
na rua. Pelo prazer de os seguir, não por eles me interessarem. Eu fotografa-os
sem o seu conhecimento, tomava nota dos seus movimentos,e finalmente perde-los
de vista e esquece-los.
No fim de Janeiro de
1980, nas ruas de Paris, segui um homem a de quem perdi de vista por uns
momentos, mais tarde no meio da multidão.
Nesse final de
tarde, por sorte, ele foi-me apresentado numa inauguração em Hurstville.
Durante o desenrolar da conversação, ele disse-me que estava prestes a viajar
para Veneza. Foi então que decidi segui-lo.
Análise ao seu
trabalho:
" As suas
questões desafiavam a relação entre texto e fotografia privada e pública
persona, verdade e ficção, absolutamente pioneira e original.
O seu trabalho
fotográfico evoca narrativa, afectos e emoções, tocando o receptor, assim como
as possibilidades e limitações da fotografia.
Esta artista
trabalha com fotografia e performances, colocando-se em situações como se ela e
as pessoas que encontra fossem ficcionais. Ela impõe elementos da sua vida em
sítios públicos, criando uma narrativa pessoal, onde ela é igualmente autor e
personagem. Ela tem sido denominada detective e voyeurista, e os seus trabalhos
envolvem investigações levadas a sério mas também curiosidade natural.
Apesar de, a maior
parte do seu trabalho assentar no voyeurismo, Sophie Calle tem permitido que a
sua vida pessoal também seja exibida. Ela tornou-se tão intrigada por seguir os
seus assuntos inconscientes, involuntários que quis alterar esta relação e
tornar-se ela própria o assunto.
Pediu à sua mãe para
contratar um detective particular para a seguir, sem que o detective soubesse
disso, a sua finalidade era que a investigação pudesse providenciar evidências
fotográficas da sua existência.
Exquisite Pain,
1995-2003
Em 1984 recebi uma
bolsa do ministério dos negócios estrangeiros Franceses para ir para o Japão
por três meses. Parti a 25 de Outubro, sem saber que essa data marcava o início
de uma contagem decrescente do fim de uma relação amorosa- nada de
surpreendente, mas para mim na altura, o momento mais triste da minha vida. Eu
culpei a viagem.
De volta a França, a
28 de Janeiro de 1985, optei pelo exorcismo e falei do meu sofrimento em vez
das minhas viagens. Em vez disso, comecei a perguntar a amigos e em encontros
ocasionais: " Quando sofreste mais?" Esta partilha terminou quando
coloquei um ponto final a esta história, ou quando relativizei a minha dor em
relação às outras pessoas.
O método era
radicalmente efectivo: três meses depois, estava curada. O exorcismo funcionou.
Temendo uma possível recaída, deixei o projecto. Quando voltei a ele, quinze
anos tinham passado.
No sex last
night
Não vivíamos juntos
há mais de um ano, mas a nossa relação tinha piorado de tal forma que não nos
falávamos. Eu sonhava em casar com ele. Ele sonhava em fazer filmes. Para o
convencer a viajar pela América comigo, sugeri que fizéssemos um filme durante
a viagem. Ele concordou.
A nossa ausência de
comunicação deu a ideia de nos equiparmo-nos com câmaras separadas, fazendo
delas as únicas confidentes das nossas respectivas frustrações e secretamente
confidenciando todas as coisas que não dizíamos um ao outro.
Estabelecidas as
regras, a 3 Janeiro de 1992 partimos de Nova Iorque no seu Cadilac prateado em
direcção à California.
Livro
de Sophie Calle - did u see me
Em jeito de conclusão
Tal como vimos, os artistas
de hoje, de uma maneira exemplar e talvez mais do que ninguém, não só
inventaram as suas próprias regras de conduta mas também, ao ir o mais longe
que puderam na transformação do seu próprio corpo, propuseram e utilizaram as
suas vidas como obras, carregando-as de valor estético, marcadas por acções
performativas e por figuras de estilo nos seus discursos que perpetuam os seus
impactos, criando condições para a sua inscrição na história das artes
performativas e do corpo.
Olhando para trás, podemos
concluir que muitos artistas contemporâneos produzem
a sua arte com base num trabalho em torno das suas personalidades resultantes
das suas histórias de vida. Deste modo, a arte que resulta desse modus operandi para lá de nos colocar
perante algo que nos interpela, porque nos faz pensar nas nossas próprias
vidas, demonstra-nos o carácter processual das práticas artísticas
contemporâneas. Há obras que são levadas a cabo para responder a inquietações
existenciais, em que a ilusão de qualquer finalidade é rejeitada,
desobrigando-se de almejar um resultado passível de provocar emoção estética. Uns
porque não suportam a realidade, querendo fugir dela, outros porque alegremente
se lançam na descoberta de outros que os habitam interiormente, não querendo
mais cativá-los, sob a pena de não conseguirem lidar com essa multiplicidade e
nessa imersão nem sempre se consegue e deseja trazer à superfície os resultados
desse aprofundamento. Porque tomar consciência de e ser múltiplo de si pode
isolar qualquer um nesse jogo dramático.
É sabido que enfrentar essa
outridade requer tempo, desaconselhando a precipitação, dado o elevado risco de
passagem para um estado patológico indesejado. Sendo impossível de calcular o
tempo necessário para esse confronto, a partilha deixa de ser um objectivo. É claro que isto pode resultar numa tremenda decepção do
ponto de vista do espectador, até numa revolta, caso tenha sido anunciado uma
data ou um período de acesso, por via da ofensa que pode ser acompanhada da
seguinte pergunta: - O que é que eu tenho
a ver com isso? É legítimo, tanto a proposta, quanto a reacção. Não há
volta a dar. Essa é uma das querelas da arte contemporânea: a discrepância
entre a expectativa criada a partir de uma sinopse, texto de apresentação ou
outro qualquer ponto de partida nos espectadores vs o resultado final (quando partilhado). Não há obrigações, nem
direitos, muito menos deveres. De parte a parte. Tudo é permitido. Quer dizer,
quase tudo, porque ainda não se sabe o que aí vem.
Douleur exquisite é uma expiação amorosa, narrada pelo viés da
memória. Narra uma história através das fotografias e escritos num diário de
viagem vivida por ela, o que permite uma análise de dicotomia: real e
ficcional. As trajetórias individuais e as suas relações com outros gêneros
literários, entre os quais o diário, as cartas e as memórias, consistem num dos
assuntos mais discutidos na modernidade, principalmente no âmbito dos estudos
literários. como consequência dos estudos do gênero autobiográfico, os limites
entre real e ficcional são, frequentemente abordados.
Douleur exquisite inclui-se nessa categoria de textos em que a
fidelidade ao real é posta em xeque, o que possibilita um estudo da sua
narrativa à luz da autobiografia e da autoficção.
O seu trabalho articula-se nos moldes da arte contemporânea. O seu olhar
para a arte dispensa um cuidado com o corpo, com o espaço e com os suportes,
tendo a fotografia como mote. Ela passeia pelas cidades, como um flâneur, e tenta conhecê-las ou
reconhecê-las através da lente da câmara fotográfica. Segue transeuntes e
desconhecidos e fotografa-os, busca vestígios na memória de pessoas, através de
entrevistas e reinventa as suas respostas; fotografa a si mesma, como
performer, apropria-se de objectos e de histórias para compor a sua arte, a sua
obra pode ser conhecida através de instalações de fotografias , exposições, que
depois são transpostos para formatos de livros.
A artista propõe uma recriação da realidade, um jogo de olhares ( e de
espelhos), em que é um voyeur, mas também se deixa ver pelo outro; um jogo de
sombras, em que se persegue o outro, mas também se deixa seguir; e um jogo de
palavras, no qual interroga pessoas e recria ou reinventa as respostas.
O resultado é La Filature (1981),
exposição que apresenta os diferentes olhares cruzados descritos através de
relatos e fotografias distintas feitas num único dia – as fotografias da
artista, tiradas pelo detective, e as imagens deste, feitas por uma terceira
pessoa contratada por Sophie Calle, além da narração da própria artista sobre o
seu dia, o relatório do detective sobre as suas actividades, e ainda o relato
de uma outra pessoa sobre as acções do detective.
uma forma de propiciar um encontro consigo mesma. Ser seguida seria
abrir-se para o olhar capaz de devolver aquilo que é olhado, se constituído como
sujeito, um ver o que nos olha, como sugere Georges Didi- Huberman: “O que
vemos só vale – só vive – nos nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável é a
cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”.
O “diário de viagem” de Sophie C. coloca o leitor diante de uma situação de
mudança dolorosa, uma experiência da própria narradora, cujo relato vem
acompanhado de noventa e duas fotografias referentes ao mesmo número de dias
que durou a viagem da artista.
O que encontramos em Douleur exquisite é uma presentificação do passado,
com a vida e a obra da artista justapondo-se, como num texto autobiográfico.
todavia, se a autobiografia possibilita uma primeira abordagem do texto de
Douleur exquise, por vários momentos o conceito de autoficção parece-nos ser o
mais apropriado para este exercício.
A autobiografia é comumente analisada na sua forma narrativa. No que se
refere à fotografia , ela pode se valer da mesma premissa que a autobiografia:
o de legitimar um referente, o de atestar que “isso que vejo encontrou-se lá,
nesse lugar que se estende entre infinito e sujeito (operator ou spectador);
ele esteve lá, e todavia de súbito foi separado; ele esteve absolutamente,
irrecusavelmente presente, e no entanto, já deferido. A fotografia, mais que o
texto, pode ser um elemento de autentificação do autobiográfico. Segundo
Barthes,
“a linguagem é, por natureza, ficcional; para tentar tornar a linguagem
inficcional é preciso um enorme dispositivo de medidas: convoca-se a lógica, ou
na sua falta, o juramento; mas na Fotografia, por sua vez, é indiferente a
qualquer revezamento: ela não inventa; ela é a própria autentificação”, afirma
o autor.
As fotografias em Douleur exquisite não possuem autonomia num outro
contexto; é o texto que preenche as lacunas deixadas por elas, colocando me
dúvida a afirmação de Barthes de que pelas fotografias “o poder da
autentificação sobrepõe-se ao poder de representação.”
Bibliografia
ASSELIN, O. & LAMOREUX,
J. (2002) Autofictions. Les identités
électives, “Parachute”, nr. 105. Montreal, pp. 10-20.
FOUCAULT, Michel,
(1994), História da Sexualidade II - O
Uso dos Prazeres. Relógio d' Água, Lisboa. ISBN 9789727082414.
STEINER, B. & YANG, J.,
(2004), Autobiography. Thames &
Hudson: Londres.
[1] ORWELL, George, in STEINER, B. & YANG, J. (2004), Autobiography. Thames & Hudson:
Londres: 58.
[2] Caroline G.
Heilbrun, teórica feminista americana, é professora, escritora e romancista de policiais.
[4] BOLTANSKY, Christian, Idem: 68.
[5] ROSENBORG (H.), Idem: 57.
[7] Refiro-me,
concretamente, a instalações com dispositivos passíveis de serem accionados
pelos visitantes, que permitem um contacto mais implicativo e, quiçá,
diferenciado da obra.
[8] SCHÄFER, Julia, in STEINER, B. & YANG, J., Op. Cit.: 187.
[9] SHERMAN, C. Idem: 67.
[10] ROSE, Ph. Ibidem: 166.
[11] ANG, J. Ibd.: 103.
[12] BOLTANSKI, Ch. Ibd.: 70.
[13] WARHOL, A. Ibd.: 52
[14] Enunciado da autoria
de Philippe LeJeune citado pelos autores no texto de entrada: Writing identity: On autobiography in Art.
[15] [15]
STEINER, B. & YANG, J., Ibd.: 15.
[16] STEINER, B. &
YANG, J. Ibd.: 27.
[17] STEINER, B. &
YANG, J. Ibd.
[18] ASSELIN, Olivier,
LAMOUREUX, Johanne, Autofictions, or
Elective Identities, “Parachute”, 105, p. 11.